NOVO MANIFESTO PELA FEDERALIZAÇÃO DOS CRIMES DE MAIO, E FIM DA "RESISTÊNCIA SEGUIDA DE MORTE"

sábado, novembro 05, 2011

Mães de maio: uma ferida aberta na democracia brasileira

por Bruno Shimizu
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Criminologia pela USP



Mães de maio: uma ferida aberta na democracia brasileira. In Boletim IBCCRIM. São Paulo : IBCCRIM, ano 19, n. 227, p. 15-16, out., 2011.


Em 17 de maio de 2006, a direção da escola onde o jovem Mateus estudava recebeu uma ligação ordenando “toque de recolher”. Assim, Mateus e seu amigo Ricardo foram dispensados das aulas sem qualquer explicação, tendo se dirigido a uma pizzaria próxima. Lá, os dois foram alvejados e mortos por indivíduos encapuzados sobre motocicletas: milicianos ligados à Polícia Militar. A morte de Mateus é contada por Vera, sua mãe, na publicação Do luto à luta, produzida de forma independente pelas Mães de Maio da Democracia Brasileira por ocasião dos cinco anos dos massacres perpetrados por policiais e milicianos em maio de 2006 no Estado de São Paulo.(1)

Os “crimes de maio” foram assassinatos e desaparecimentos forçados praticados por grupos ligados à polícia como resposta aos ataques atribuídos à facção Primeiro Comando da Capital no Estado de São Paulo, ocorridos em 2006. Os atentados atribuídos à facção incluíram disparos de arma de fogo e arremesso de explosivos contra estações policiais, agências bancárias e edifícios públicos, queima de ônibus e assassinatos de agentes de segurança.(2) Em represália, grupos de extermínio ligados à polícia promoveram a maior chacina de que se tem notícia na história brasileira, consistente na execução sumária de centenas de pessoas em zonas periféricas, sendo que a grande maioria das vítimas sequer possuía qualquer relação com a facção responsável pelos ataques.

As Mães de Maio da Democracia Brasileira, por seu turno, são uma organização de pessoas que tiveram parentes próximos mortos por agentes do Estado ou por grupos de extermínio ligados a esses agentes. Sua criação deu-se pela mobilização das mães de jovens mortos pela polícia em maio de 2006, e sua luta consiste no combate à letalidade policial e à conivência das autoridades do sistema de justiça.(3)

A morte de Mateus, conforme dados do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, insere-se nas 493 mortes por arma de fogo que ocorreram no Estado entre 12 e 20 de maio de 2006.(4) De todas essas mortes, há denúncias da participação de agentes policiais em, pelo menos, 388 casos, conforme dados divulgados pelo Observatório de Violência Policial.(5) A publicação da lavra das Mães de Maio, de certa forma, tenta impedir que esses assassinatos se tornem mera estatística esquecida.

O relatório “São Paulo sob achaque”, elaborado pela Clínica Internacional de Direitos Humanos da Universidade de Harvard em parceria com a ONG Justiça Global, identificou, por meio de entrevistas com autoridades e análise de inquéritos de maio de 2006, um universo de 122 mortes em relação às quais há indícios da participação de agentes policiais, concentrados na capital paulista e na baixada santista.(6) O relatório chegou à conclusão de haver provas concretas da ação de grupos de extermínio ligados à polícia em 71 desses casos.(7) A principal prova da atuação orquestrada de grupos de extermínio diz respeito ao modus operandi empregado, que envolve, inevitavelmente, um “toque de recolher” prévio, a escolha de “alvos” (pessoas com antecedentes criminais ou com tatuagens) e o ataque de executores encapuzados, normalmente sobre motocicletas. Em todos esses casos, assim que ocorreram os assassinatos, viaturas oficiais da PM surgiram imediatamente, fazendo desaparecerem os vestígios da execução e alterando a cena do crime, sob o pretexto de prestar socorro às vítimas.(8)

O dado mais alarmante trazido pelo relatório, contudo, aponta para o fato de que as instituições pretensamente democráticas responsáveis pelo controle externo da atividade policial e pela salvaguarda dos direitos humanos são lenientes, quando não coniventes, com o massacre das classes indesejadas.

Todos os inquéritos relativos aos casos em que o relatório constatou a presença da atividade de grupos de extermínio ocorridos em maio de 2006 foram arquivados, a pedido do Ministério Público, sem maiores investigações. O relatório de Harvard aponta o Judiciário, por ter concordado com todos os arquivamentos, e o Ministério Público como autores de falhas cruciais. Sobre o papel do Ministério Público, consta do relatório: “O Ministério Público Estadual também falhou em: 1) não investigar os Crimes de Maio de forma sistemática e rigorosa, 2) não exigir melhores investigações nos inquéritos policiais (...), e 3) não manter sua preciosa isenção no momento da crise, sinalizando à Polícia Militar que eles, promotores, já teriam conclu&iacu te;do que não houve um revide policial orquestrado após os ataques”.(9) Essa última falha apontada pelo relatório é referência, principalmente, a um ofício assinado por dezenas de promotores atuantes na área criminal, enviado, em 25 de maio de 2006, ao Comando Geral da PM. Neste ofício, os subscritores reconhecem “a eficiência da resposta da Polícia Militar, que se mostrou preocupada em restabelecer a ordem pública violada, defendendo intransigentemente a população de nosso Estado”.

Acrescentam que estão certos de que “eventuais excessos praticados individualmente serão objeto de apuração devida pelos órgãos responsáveis”.(10) O relatório conclui que atos como esse ofício parecem “chancelar a ação violadora do Estado”,(11) na medida em que os subscritores recusam-se, de antemão, a aceitar a possibilidade de um problema estrutural, que extrapole os “excessos praticados individualmente”, no que foi a maior chacina de que se tem notícia na história do Brasil.

Com base neste contexto, as Mães de Maio – enxergando que o assassinato de seus filhos desarmados foi entendido como ato de heroísmo pelos órgãos responsáveis pela persecução penal – têm como objetivo imediato o desarquivamento e a federalização dos crimes de maio.(12) Com efeito, o relatório reconheceu, com base em dados documentados, a postura tendenciosa dos órgãos estaduais. Tendo havido grave violação de direitos humanos, o art. 109, § 5º, da Constituição Federal, acrescentado pela Emenda Constitucional 45/04, prevê o deslocamento da competência para a Justiça Federal, o que se justifica ao constatarmos que a postura das autoridades estaduais pode levar à responsabilização internacional de toda a Federação brasileira.

Os crimes de maio e a postura das autoridades perante a grave violação de direitos humanos afloram como uma prova inequívoca de que ainda não existe democracia no Brasil, ao menos do ponto de vista dos direitos civis, estando os próprios órgãos responsáveis pela defesa dos direitos humanos embebidos das práticas institucionais típicas do estado ditatorial. A esta democracia meramente nominal, que se instituiu sem a promoção de uma cultura de defesa dos direitos individuais, Caldeira dá o nome de “democracia disjuntiva”. Segundo a autora, a democracia brasileira é disjuntiva porque, “embora o Brasil seja uma democracia política e embora os direitos sociais sejam razoavelmente legitimados, os aspectos civis da cidadania são continuamente violados”.(13).

O Brasil é formalmente uma democracia, mas habitada por instituições ditatoriais, com valores antidemocráticos. Essa ideia de democracia incompleta parece ter sido captada com excelência por Débora, uma das Mães de Maio, que teve seu filho Edson assassinado no massacre de maio de 2006. Em palestra proferida em maio 2011 na Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Débora questionou, enquanto sustentava estarmos sob um Estado fascistóide, e referindo-se aos desaparecimentos forçados de maio de 2006: “Se estão ‘escavocando’ os mortos da ditadura, porque não podem ‘escavocar’ nossos filhos?”. A contundência dessa pergunta deixa clara a situação inusitada de continuidade entre ditadura e democracia no Brasil. A indignação dessas mães diante do horror e da indiferença , por outro lado, parece ser o pouco que sobrou depois dos assassinatos e dos arquivamentos que escancararam a real funcionalidade do sistema de justiça criminal.


NOTAS

(1) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do luto à luta. Publicação independente. São Paulo: 2011, p. 28.
(2) ADORNO, Sérgio; SALLA, Fernando. Criminalidade organizada nas prisões e os ataques do PCC. In: Estudos Avançados, n. 61, 2007, p. 8-9.
(3) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do luto à luta. Publicação independente. São Paulo: 2011, p. 12-13.
(4) Idem, p. 32.
(5) Idem, p. 36.
(6) INTERNATIONAL HUMAN RIGHTS CLINIC E JUSTIÇA GLOBAL. São Paulo sob achaque: corrupção, crime organizado e violência institucional em maio de 2006. 2011, p. 5.
(7) Idem, p. 100.
(8) Idem, p. 102.
(9) Idem, p. 181.
(10) Idem, p. 239.
(11) Idem, p. 181.
(12) MÃES DE MAIO DA DEMOCRACIA BRASILEIRA. Do luto à luta. Publicação independente. São Paulo: 2011, p. 21.
(13) CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2ª ed. São Paulo: Edusp, 2008, p. 343.


Bruno Shimizu
Defensor Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Criminologia pela USP

Nenhum comentário:

Postar um comentário