O sociólogo uriguaio Raul Zibechi escreve sobre a luta das Mães de Maio da Democracia Brasileira
"Meu filho se chama Edson e tinha 29 anos. Foi morto na rua, tinha ido comprar remédios e por gasolina em sua moto. Vivemos na Baixada Santista, num bairro de trabalhadores em São Paulo. Os policiais o seguiram e o mataram a 500 metros do posto de gasolina."
(Tradução de Fausto Brignol).
"Meu filho se chama Edson e tinha 29 anos. Foi morto na rua, tinha ido comprar remédios e por gasolina em sua moto. Vivemos na Baixada Santista, num bairro de trabalhadores em São Paulo. Os policiais o seguiram e o mataram a 500 metros do posto de gasolina. Embora haja contradições nas declarações, o Ministério Público não fez nada e arquivou o caso", disse Débora Maria da Silva, uma mulher de 50 anos, mãe de outras duas filhas.
Edison passou sete anos trabalhando em uma empresa de limpeza, tinha um filho e estava longe do perfil de delinqüente, porém sua pele era escura e vivia em um bairro pobre da Baixada Santista, no litoral do estado de São Paulo. No mesmo dia em que morreu Edison, o PCC - Primeiro Comando da Capital -, organização criminal de narcotraficantes, atacou postos de polícia e queimou vários ônibus. "A cidade ficou paralisada, parecia que tinha havido um terremoto", disse Débora.
A onda de violência na maior cidade da América do Sul, com 20 milhões de habitantes, começou em 12 de maio, depois que o governo da capital trasladou 765 presos de uma prisão de segurança máxima, que ficava a 620 quilômetros da capital. Um dos prisioneiros trasladados era o líder do PCC, Marcos William Herba Camacho, apelidado de Marcola, que dirigia a organização criminal desde a sua cela. Em três dias aconteceram 180 ataques a forças policiais e guardas penitenciários, morrendo 39 agentes e 38 bandidos, segundo estimativas oficiais, e foram incendiados mais de 100 ônibus e automóveis e uma dezena de sucursais bancárias.
Simultaneamente, foram registrados motins em 73 penitenciárias, que foram declaradas em estado de rebelião, das 144 que há em todo o estado. O diário conservador Folha de São Paulo alertou que no necrotério metropolitano haviam ingressado muito mais cadáveres do que informou o governo do estado: 272 mortos, enquanto o governo anunciava 172 mortos oficiais. Isso leva a suposição de que houve dezenas de assassinatos ilegais, que o diário atribuiu a encapuzados, que deveriam ser policiais. Em 24 de maio, quando ainda não havia terminado a repressão, as autoridades admitiram que das 300 vítimas reconhecidas somente 79 teriam relações com o crime organizado (1).
Naquele mesmo dia, a Anistia Internacional disse que estavam operando esquadrões da morte integrados por policiais, cujas vítimas somaram-se "aos cerca de 9 mil assassinatos perpetrados pela polícia brasileira, em sua maioria categorizados como casos de "resistência seguida de morte", sem investigação judicial, registrados entre 1999 e 2004" (2). Muitos acusaram o governador Claudio Lembo. A revista Exame se queixava de que a violência gera gastos equivalentes a 10% do produto interno bruto. O presidente Lula foi um dos primeiros a por o dedo na ferida: "O problema é a sociedade brasileira, estamos colhendo o que foi semeado neste país" (3).
NEM JUSTIÇA NEM LEI
"Algumas mães que tinham filhos que foram mortos pela polícia, os quais não tinham relação com a criminalidade, decidimos enfrentar o estado, porque é quem tem o controle da segurança. Como estávamos em período de eleições não queriam mostrar debilidade e decidiram enfrentar a raiva da população que queimou os ônibus, matando os jovens pobres", disse Débora. "Quando me dei conta que as mortes dos jovens aconteciam todas da mesma maneira e que eram todos trabalhadores, comecei a buscar as outras mães. Eles banalizaram as mortes porque desde acima lhes pediam números. Fiz um trabalho de formiga, visitando as casas das mães; muitas tinham medo e não queriam falar".
Em julho daquele mesmo ano começaram a reunir-se três mães para visitarem as delegacias policiais, conhecer os motivos das mortes e entrevistar as autoridades. Um ano depois das mortes, realizaram uma manifestação e uma missa, com cerca de mil pessoas com cartazes que diziam: "Bandidos são aqueles que matam inocentes". A maior parte dos mortos viviam na Baixada Santista. "O Estado arquivou todos os casos e não processou nenhum policial". Os números são muito claros: o Estado admite que houve 493 mortos por armas de fogo entre 12 e 20 de maio, dos quais o PCC matou 47. "Portanto, a polícia matou 446 pessoas", concluiu Débora.
Conseguiu demonstrar que a polícia havia mentido no caso do seu filho Edson e pôs em evidência as contradições no expediente policial. "Eles disseram que a rádio da polícia estava desligada, mas eu demonstrei o contrário". O mais doloroso - explica - foi que lhe fecharam todas as portas, porque o Estado arquivou todas as causas. Só lhe restou juntar-se com outras mães, esforçar-se por compreender uma situação que a desorientava e trabalhar para que isso não voltasse a acontecer.
Primeiro, decidiram chamar-se Mães de Maio e organizaram a associação "Mães e Familiares de Vítimas de Violência da Baixada Santista". Com o tempo, juntaram-se a elas pessoas que, inclusive, tinham sido afetadas pela ditadura militar e que não tinham tido força para reclamar por seus familiares, e quando elas apareceram se animaram a denunciar o que tinha acontecido décadas atrás. "Agora somos 17 mães só na Baixada e mais 4 em São Paulo. Já temos grupos em 13 estados, que são de familiares de pessoas que foram afetadas pela Polícia Militar", disse com orgulho. Trabalham com a "Rede Contra a Violência", do Rio de Janeiro e com mães do Espírito Santo, Minas Gerais, Belém, Pará, Acre e Pernambuco - entre os estados mais importantes.
Quando fala, ou mesmo quando se agita, Débora encontra certa calma: "Nossas reuniões são muito dolorosas, choramos, sentimos muita angústia porque a impunidade é o que dói mais, a gente cria um filho que é morto pelo Estado. Uma mãe não é morte, é vida. Nas reuniões da gente não aceitamos o que aconteceu, choro quando vejo uma foto do meu filho. Eu faço tratamento para depressão. Sou viúva porque meu marido morreu de maneira parecida com a morte do meu filho... E tenho um irmão desaparecido". Pelo que se ouve no Fórum Social da Bahia, a declaração de Débora parece ser a realidade de muitas famílias brasileiras.
GENTE QUE SOBRA
"O Estado extermina os pobres e negros favelados por que é mais fácil matá-los do que dar-lhes educação e saúde, porque para eles os pobres sobram. Os rapazes negros são os mais vulneráveis. A política de segurança deste país é uma política de extermínio, eles preferem cárceres a escolas. Aos jovens é aplicada uma figura que é a "resistência seguida de morte", o auto da resistência, que não existe no Código Penal", diz uma Débora politizada pela sua experiência de vida.
No entanto, não são somente opiniões de uma mãe sofrida. O livro "Crimes de Maio", publicado pelo CONDEPE (Conselho Estatal de Defesa da Pessoa Humana, de São Paulo), uma comissão independente integrada por membros do Ministério Público Federal, o Conselho Regional de Medicina, a Defensoria Pública (Cremesp) e várias entidades defensoras dos direitos humanos, chega a conclusões similares às de Débora.
Desiré Carlos Callegari, presidente do Cremesp, afirma que entre os mortos de maio houve maioria de homens (96,3%) e de jovens (45% tinham entre 21 e 31 anos; 16,5% entre 31 e 41 anos). Cada morto recebeu uma média de 5,8 disparos no dia 15 de maio. Dos 493 mortos, 43 foram vítimas de delinqüentes (23 policiais militares, 3 policiais civis, 3 guardas municipais, 9 agentes penitenciários e 4 cidadãos comuns. Dezessete foram presos que se haviam rebelado e 109 morreram em enfrentamentos. Porém, 87 foram mortos por assassinos não identificados "com indícios de execução com participação policial" (4).
O perito criminal Ricardo Mollina de Figueiredo, membro da comissão independente, analisou os casos rotulados como "resistência seguida de morte", ou seja, 124 mortos na semana de 12 a 20 de maio. O estudo de todos os casos revela: que na maioria dos casos as vítimas foram atingidas em regiões de alta letalidade; que os disparos foram feitos de pouca distância e que a maioria dos disparos foram feitos de cima para baixo.
Isso permite assegurar que "a combinação desses fatores aponta para uma situação compatível com execução e não com tiroteio. Em uma situação de confrontação seria altamente improvável que houvessem os três casos assinalados acima, o que nos permite dizer que houve execuções em 60 a 70% dos casos analisados" (5).
A Defensoria Pública de São Paulo disse mais ou menos a mesma coisa. Pedro Giberti, Subdefensor Público Geral, denuncia que houve desvio de conduta e abuso de autoridade. O pior é que esses elementos "não se transformaram, até o presente, em denúncias, sendo sepultados na fossa comum do arquivo, onde jaz a impunidade" (6).
Graças a essa comissão e ao trabalho das Mães de Maio, ficou na opinião pública a certeza de que houveram muitas execuções sumárias. A segunda conclusão, disse o próprio Estado: uma vez mais, ganhou a impunidade. A questão é grave porque em São Paulo os assassinatos voltaram a aumentar depois de dez anos. Nas periferias e nas cidades do interior e do litoral a violência segue crescendo. Na Baixada Santista, em um só ano os assassinatos subiram a 37,7%.
UM ESTADO GENOCIDA
Compreender como pode estar acontecendo tudo isso em um país que aspira a ser uma referência mundial, onde impera uma democracia já faz vinte anos, que conta com um governo progressista como o de Lula e que vai organizar os Jogos Olímpicos e a Copa do Mundo, demanda em sondar em várias direções.
Rafael Dias, da ONG Defesa Global, acredita que no Brasil existe um Estado genocida porque "nunca houve uma ruptura entre o Estado da escravidão e o Estado moderno e temos agora um Estado elitista que funciona através da violência para separar os índios, os negros, os pobres, que são considerados com ameaças, como classes perigosas" (8). Em sua opinião, é uma questão de Estado, não de Governo". Por isso, nada mudou com o Governo instalado em 2003. "Agora temos o modelo de militarização das favelas, porque se segue considerando o pobre como um perigo permanente e este é a lógica da segurança pública".
Os membros do governo seguem tratando os favelados como lumpen, pessoas que estão fora da sociedade, disse Rafael Dias. "O governo não compreende a situação dos mais pobres, porque como não estão organizados em sindicatos nem em partidos, não formam parte do projeto político e acreditam resolver o problema aplicando políticas compensatórias, como o Bolsa Família. Estamos repetindo os três eixos que haviam durante a escravidão, o tríplice P: pão, pau e pano" (9).
Maurício Campos é engenheiro e trabalha na Rede Contra a Violência, do Rio de Janeiro, que nasceu em 2003 durante uma série de mobilizações das favelas contra a violência policial. "Nosso trabalho consiste no acompanhamento jurídico das pessoas que sofrem violência. A principal dificuldade para trabalhar nas favelas é a violência do Estado, o medo, os massacres, já que as pessoas que fazem trabalho permanente estão expostas às mesmas ameaças que atemorizam a população pobre" (10). Acredita que o massacre de Acari, em 1990, no Rio, quando mataram 11 jovens provocou uma mudança na sociedade já que "foi a primeira vez que houve uma grande reação coletiva dos familiares das vítimas".
Campos sustenta que não se pode fugir do problema da "relação econômica entre o crime organizado e a polícia, já que os delinqüentes não querem que se faça nenhuma denúncia contra, porque eles acertam com a polícia através de propinas. Para os ativistas sociais, a polícia é o primeiro problema, porque ela sempre ataca as organizações sociais". E acrescenta que "a violência contra os favelados vem crescendo porque a elite brasileira é a pioneira no mundo para atacar os pobres antes que se organizem. Em outros países, a violência da elite é reativa, porém aqui é preventiva, porque temos uma burguesia muito capaz, a mais lúcida da América Latina, contando com um aparato de dominação, como a Rede Globo, que você não vê em outros países".
O grande problema do tráfico de drogas, em sua opinião, é que "é um articulador de todas as atividades criminais, é um grande catalisador de toda a atividade ilegal". Por outro lado, "o aumento das lutas nos anos 70 e 80 foi liquidado com a repressão sob a ditadura, porém, quando retornou a democracia, a repressão direta foi freada e começou a criminalização dos pobres. É um processo incontrolável, porque o aparato policial tem uma autonomia incrível, ao ponto de nenhum governo se atrever a enfrentá-lo".
Este é um dos pontos chaves: a mudança social está vetada para a maioria pobre, negra e jovem. "Se houvesse um movimento social forte, muitos desses jovens deixariam de ter como referência o crime e se relacionariam com as lutas sociais. Os jovens são tragados por um processo, eles não elegem o crime, simplesmente está aí, e às vezes querem vingar-se da polícia, porque não há justiça, nem há organização social, nem guerrilha, e a única saída é entrar no tráfico", conclui Campos.
Não só os ativistas sociais tem este tipo de análise. Vale a pena ouvir uma das vozes mais importantes do lado conservador, pela boca de um dos mais altos cargos que teve de enfrentar o crime organizado em São Paulo, o ex-governador Claudio Lembo.
No dia em que Lembo se despediu de seu cargo, em 31 de dezembro de 2006, concedeu uma entrevista à Folha de São Paulo, em que falou sobre os agitados dias de maio: "Na crise do PCC, figuras da minoria branca queriam a lei do talião. Queriam que matassem a todos, para preservar a eles, os da minoria branca. Isso foi o que mais me irritou. Estávamos em um momento extremamente difícil e tínhamos que mostrar que o Estado pode vencer dentro da lei. Me telefonavam, e uns poucos viram falar comigo" (11).
Lembo é um conservador que agora pertence ao partido Democratas (DEM) e que teve cargos ministeriais em São Paulo durante a ditadura militar. Perguntado pela jornalista sobre o que pedia a minoria branca, foi claro: "Que a polícia saísse às ruas, de noite, e realizasse execuções". Nunca disse quem são essas pessoas que queriam vingança, mesmo que nunca tivessem sido diretamente afetados pela violência. Porém, é claro que pertencem a essa minoria de ricos que utilizam o Estado para seu exclusivo benefício.
Em pleno conflito, Lembo disse que a violência só terminará quando a minoria branca mudar a sua mentalidade. "Temos uma burguesia muito má, uma minoria branca muito perversa. O bolso dessa burguesia tem que se abrir para sustentar a miséria social brasileira no sentido de criar empregos, de que haja mais educação, mais solidariedade, mais diálogo e reciprocidade de situações". "Em que sentido são responsáveis?", pergunta a jornalista. "Na formação histórica do Brasil. Quando os escravos foram libertados, quem recebeu a indenização foi o amo, não os libertados, como aconteceu nos Estados Unidos. É um país cínico".
Se isso é o que pensa e sente um homem conservador, advogado e professor universitário de quase 80 anos, governador encarregado de reprimir a criminalidade e de alguma maneira membro dessa elite que critica, o que podem sentir os jovens de 15 a 18 anos, pobres, negros, desocupados, sempre perseguidos?
Débora o explica a seu modo: "O pobre não tem direito de chegar ao poder. Isso é para os filhinhos de papai".
Notas:
1. "Investigam atuação de grupos de extermínio em São Paulo", AFP e DPA, 24 de maio, São Paulo.
2. Idem.
3. Agência Reuters, São Paulo 19 de maio de 2006.
4. Agência Carta Maior, São Paulo 17 de fevereiro de 2007.
5. Idem.
6. Idem.
7. Mães de Maio, http://maesdemaio.blogspot.com/.
8. Entrevista a Rafael Dias.
9. En portugués: pan, palo y paño (tela).
10. Entrevista a Maurício Campos.
11. Folha de São Paulo, 31 de dezembro de 2006, entrevista de Mônica Bérgamo.
12. Folha de São Paulo, 18 de maio de 2006, entrevista de Mônica Bérgamo.
Web site: www.argenpress.info Autor: Raúl Zibechi (IRCAMERICAS)
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